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domingo, 29 de julho de 2012

UMA GIGANTESCA ANARQUIA FUNDIÁRIA


Maioria dos latifúndios da Amazônia Legal não tem documentação regularizada
Sem dúvida, a preocupação com questões ambientais, motivada entre outros fatores pelo fantasma do aquecimento global, nunca esteve tão em voga. Nesse contexto, é natural que a criação de um modelo sustentável de desenvolvimento para a Amazônia tenha entrado definitivamente na lista de prioridades da agenda política brasileira. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva já assumiu, em declarações de repercussão internacional, o compromisso de frear drasticamente o desmatamento que, até o momento, já atingiu pelo menos 15% da cobertura original da maior floresta do planeta. Desde o ano passado, uma das mais importantes tarefas a realizar com o intuito de garantir uma exploração menos predatória da Amazônia vem sendo motivo de intenso debate no Palácio do Planalto: regularizar a situação jurídica das terras ocupadas principalmente pela agropecuária.

A verdade é que o governo brasileiro não sabe ao certo quem são os atuais donos de lotes na região, e colocar ordem nesse verdadeiro caos fundiário é mais do que urgente. De acordo com um estudo publicado em abril do ano passado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), um dos principais centros de pesquisa sobre a floresta, os imóveis rurais com cadastro validado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) perfazem apenas 4% de toda a área da chamada Amazônia Legal – porção de 5 milhões de quilômetros quadrados que responde por três quintos do território nacional, englobando todos os estados da região norte, além de Mato Grosso, Tocantins e de parcelas do Maranhão e de Goiás.

Segundo o Imazon, outros 43% encontram-se protegidos principalmente por terras indígenas e unidades de conservação. O restante é classificado como áreas supostamente privadas sem validação de cadastro (32%) e terras supostamente públicas que não estão resguardadas por nenhum tipo de reserva (21%). Em outras palavras, a esmagadora maioria dos imensos latifúndios, das fazendas de porte médio e dos pequenos sítios localizados na Amazônia ainda não está com a documentação em dia. E, para agravar o quadro, em grande parte esses imóveis ocupam áreas públicas que pertencem de fato à União ou aos governos estaduais. Somente sob alçada do Incra, por exemplo, existem 670 mil quilômetros quadrados que ainda não foram destinados à criação de assentamentos ou de reservas, mas que também não foram repassados oficialmente aos produtores particulares que lá se encontram.

A desorganização fundiária, porém, não gera transtornos apenas no meio rural. Dos 769 municípios da Amazônia Legal, 172 – ou 22% – têm pelo menos parte de sua sede, ou seja, o perímetro urbano propriamente dito, sobre terrenos que na realidade fazem parte do patrimônio público da União. Na prática, isso inviabiliza a celebração de convênios entre prefeituras e governo federal para a construção, por exemplo, de escolas e hospitais nessas áreas. E ainda prejudica a cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), uma das principais fontes de recursos para as administrações municipais.

Nos últimos meses, as discussões nos gabinetes de Brasília para resolver a anarquia fundiária da Amazônia ganharam fôlego redobrado e até motivaram um racha no Planalto. O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), Roberto Mangabeira Unger, uma das principais vozes do governo sobre o tema, defendia, entre outras medidas, a criação de uma agência para coordenar exclusivamente esse processo, em substituição ao Incra. Nas entrevistas sobre o assunto, o ministro costuma afirmar que o órgão federal já tem trabalho demais com as tarefas cotidianas decorrentes da implantação de assentamentos. A ideia de Mangabeira, no entanto, foi voto vencido, e o presidente Lula vai mesmo deixar essa missão a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao qual o Incra é vinculado.

As propostas do governo, aliás, vão seguir a linha de um projeto, batizado de Terra Legal, que já havia sido preparado pelo próprio Incra e que pretende colocar em ordem de forma mais ágil a situação jurídica dos lotes de no máximo 15 módulos fiscais – limite das chamadas médias propriedades. Grosso modo, um módulo fiscal equivale ao sítio mínimo necessário para a sobrevivência de uma família e varia conforme as condições geográficas de cada localidade, mas não ultrapassa 100 hectares. A expectativa é que, em três anos, quase 300 mil posses ocupadas até dezembro de 2004 sejam contempladas em 436 municípios de nove estados da Amazônia Legal. Resumidamente, aquelas com até 100 hectares seriam doadas. As que têm entre essa dimensão e quatro módulos fiscais seriam vendidas a um valor praticamente simbólico. E as que figuram entre quatro e 15 módulos seriam negociadas a preço de mercado.

Segundo o presidente do Incra, Rolf Hackbart, o plano tem duas pilastras básicas. A primeira consiste numa simplificação do marco legal em vigência que trata da regularização fundiária. De acordo com cálculos do órgão, mantidas as atuais normativas, a conclusão desse processo levaria no mínimo 40 anos. A outra vertente é a realização de uma espécie de varredura, ou seja, "entrar na gleba, identificar quem a ocupa, como ocupa e qual a documentação existente", explica Hackbart. Para realizar essa missão, além dos funcionários dos órgãos de terras federal e estaduais, seriam contratadas empresas privadas para coletar in loco as coordenadas georreferenciadas das propriedades mapeadas.

As recentes propostas do governo para arrumar a bagunça fundiária da Amazônia dividiram opiniões. De um lado, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) tem manifestado apoio às ideias.? "Achamos que esse é o caminho. É importante regularizar para que os produtores da Amazônia tenham acesso a financiamentos, oferecendo garantias como o título de sua propriedade, e obtenham o que os de outras partes do país já possuem", afirma Anaximandro Almeida, assessor técnico da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da CNA.

Algumas organizações da sociedade civil, porém, encaram as medidas com preocupação. "Todos os processos de concessão de áreas públicas no Brasil ao longo da história não democratizaram o acesso à terra", alerta Sérgio Leitão, advogado do Greenpeace. Na opinião do diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), José Juliano de Carvalho Filho, se colocadas em prática, as novas ideias podem agravar ainda mais a já tão pronunciada concentração da estrutura fundiária da Amazônia. Ele acredita que os ocupantes de grandes extensões de áreas públicas vão encontrar brechas nas novas propostas do governo para se apossar definitivamente de áreas superiores ao limite de 15 módulos fiscais. "É sempre a mesma coisa: o governo diz que vai fazer em nome dos pequenos, mas acaba beneficiando os grandes. O verdadeiro programa de regularização da propriedade da terra se chama reforma agrária. Por que o governo não faz?", questiona.

Urgência
 
Afinal, por que é tão importante fazer a regularização fundiária na Amazônia? Em primeiro lugar, sem definição clara do direito de propriedade, "as pessoas têm a sensação de que o acesso à terra é livre, e que podem ocupá-la de forma gratuita. Isso gera uma corrida, semelhante à que se vê nos filmes do velho oeste americano", explica Paulo Barreto, pesquisador do Imazon. "Essa corrida, por sua vez, dá origem à violência. E o Estado não está presente nessas regiões distantes. Assim, literalmente, quem tem mais bala consegue controlar o território", completa.

O clima de indefinição sobre a propriedade fundiária na região também leva inevitavelmente à devastação da floresta. Como ainda existem vastas terras públicas sem controle definido, "é mais barato abrir novas áreas para a agropecuária do que investir nas já abertas", analisa Barreto. Sem um cadastro confiável, o governo também tem dificuldade para cobrar dos verdadeiros donos dos imóveis rurais o respeito à legislação ambiental, que prevê entre outras regras a preservação de ao menos 80% da floresta nativa nos imóveis rurais localizados no bioma amazônico.

Desde julho do ano passado, os produtores com fazendas naquela área têm enfrentado obstáculos para conseguir dinheiro em instituições financeiras públicas e privadas. Isso porque o Conselho Monetário Nacional (CMN) baixou a Resolução 3.545, exigindo documentos que comprovem o registro fundiário e o licenciamento ambiental para a liberação de financiamentos.

A medida do CMN atendeu a um pedido do próprio presidente da República, a fim de evitar que a devastação da Amazônia seja custeada por recursos públicos. Alguns dados ajudam a compreender o raciocínio. Entidades ambientalistas, e mesmo órgãos governamentais, estimam que a abertura de pastagens para a criação extensiva de bovinos responda por 70% do desmatamento ilegal da floresta. E, segundo um estudo do Imazon, desde o início do governo Lula até 2007, pecuaristas foram contemplados com R$ 1,89 bilhão do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO), do qual é gestor o Banco da Amazônia. Relação mais do que evidente entre dinheiro público, desorganização fundiária e desrespeito ao meio ambiente.

Confusão histórica
 
Ao acenar com a possibilidade de regularização das posses localizadas em terras públicas da Amazônia, o Estado brasileiro está tentando corrigir um problema que, na realidade, ele mesmo ajudou a criar. A raiz de toda a desordem fundiária está diretamente ligada ao processo recente de colonização do norte do país, em especial durante o período do regime militar, entre 1964 e 1985.

Através de uma estratégia de ocupação da floresta imortalizada por slogans como "homens sem terra para uma terra sem homens", a ditadura impulsionou a migração de trabalhadores rurais para a Amazônia como forma de esvaziar os conflitos agrários em locais de grave tensão social, como a zona canavieira nordestina e o interior de São Paulo, ao mesmo tempo em que procurava desenvolver a região com base na agropecuária e na extração das riquezas naturais da floresta. "Boa parte das pessoas que se encontram hoje, sem títulos, de forma irregular, foram para lá a convite de uma política pública do governo", explica Almeida.

Mesmo sem o título definitivo, não raro esses ocupantes conseguiam declarações de posse emitidas principalmente pelo Incra, além de outros documentos precários que davam a entender que um dia essas terras públicas passariam de vez para o domínio de particulares. Naquela época, ao contrário do que se observa hoje, desmatar metade da área pretendida era interpretado pelas autoridades como atestado de produtividade, e não como crime ambiental.

Apesar de esses papéis não garantirem a devida regularização dos imóveis rurais, nunca foi muito complicado obter crédito em bancos, conseguir autorização dos órgãos ambientais para extrair madeira ou até mesmo cadastrar a propriedade na Receita Federal para pagamento de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). Com base nisso, o assessor técnico da CNA argumenta que o Estado brasileiro tem uma espécie de "dívida histórica" com esses produtores por ter criado a expectativa de que eles se tornariam legítimos proprietários das terras. "As novas propostas do governo possibilitam que quem já foi para lá possa comprar as áreas que ocupa há anos. Não é área nova nem tomada de ninguém", alega Almeida.

Esta não é, porém, a primeira vez que o poder público tenta colocar ordem na casa. Desde 1997, o Incra convocou pelo menos seis recadastramentos de imóveis rurais com o objetivo de aprimorar o controle sobre a estrutura fundiária da Amazônia. A experiência mais recente aconteceu ao longo de abril de 2008, quando foram chamados a apresentar seus documentos os ocupantes de terras acima de 400 hectares em 36 municípios escolhidos pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) como focos prioritários para o combate ao desmatamento. De aproximadamente 15,4 mil imóveis alvo do programa, apenas 20% entregaram os papéis necessários para que se possa proceder à regularização fundiária. Na opinião de Catia Canedo, diretora da unidade avançada do Incra de São Félix do Xingu (PA), onde nenhum pedido foi protocolado, a baixa adesão ao recadastramento foi motivada pelo medo que os fazendeiros tinham de "ser pegos por crimes ambientais", já que a maioria desmatou além do permitido por lei. No entanto, para Anaximandro Almeida, da CNA, o governo não sinalizou claramente a intenção de regularizar definitivamente a situação jurídica das posses, como está fazendo agora.

O caos fundiário da Amazônia já rendeu situações, no mínimo, inusitadas. Nessa mesma São Félix do Xingu, gigantesco município de área 55 vezes superior ao da capital paulista, o cartório de registro de imóveis foi interditado três anos atrás pela Justiça por registrar, de forma fraudulenta, documentos que comprovariam o domínio sobre terras. O motivo beira o insólito: São Félix do Xingu tinha somente metade do território necessário para abrigar todas as propriedades com algum tipo de registro no cartório. Infelizmente, absurdos desse tipo se repetem em diversas partes da Amazônia.

Críticas
 
Para fazer a regularização fundiária da Amazônia nos moldes discutidos atualmente, o governo precisou mexer na legislação que trata do assunto. A Constituição Federal, por exemplo, não permite que o ocupante de um terreno sabidamente público o adquira gratuitamente, de forma definitiva e legalizada, mesmo que nele viva e produza há tempos – o que configuraria o chamado direito de usucapião. Assim, até 2005, as áreas públicas só poderiam ser repassadas a particulares por meio de leilão. Naquele ano, porém, o governo alterou a lei de licitações dispensando a hasta de terras de até 500 hectares, beneficiando posseiros até esse limite. Mais recentemente, no primeiro semestre de 2008, o presidente Lula editou a medida provisória (MP) 422, que já virou lei, ampliando a possibilidade de negociação de terras públicas de até 15 módulos fiscais com os atuais ocupantes.

Na época de seu lançamento, a MP 422 foi ironicamente apelidada por movimentos sociais e entidades de defesa da reforma agrária de Plano de Aceleração da "Grilagem". Essa prática consiste na apropriação de grandes extensões de terra por meio de fraudes e falsificação de documentos, acompanhada com frequência de violência, principalmente contra pequenos posseiros e povos indígenas. Na avaliação dos críticos, além de afrontar princípios constitucionais, as novas ideias do governo para resolver a situação fundiária da Amazônia vão servir justamente para legalizar a grilagem e beneficiar aqueles que se apropriaram de maneira indevida do patrimônio público.

Para Carvalho Filho, da Abra, o governo não vai conseguir impedir que os atuais ocupantes de áreas imensas, superiores aos limites previstos em lei, parcelem suas terras e as regularizem por partes, colocando diversos lotes em nome de "laranjas" ou de familiares. "É muito fácil ludibriar. Todo mundo sabe disso, inclusive o governo", critica. O próprio presidente do Incra vê essa possibilidade. "Se não houver fiscalização, a tendência é acontecer, sim", admite Hackbart. Porém, para driblar esse problema, ele destaca a importância do trabalho de varredura, que em sua opinião vai permitir que se conheçam os ocupantes de boa e os de má-fé, combatendo assim a grilagem.

Para Sérgio Leitão, do Greenpeace, o governo deveria em primeiro lugar acelerar a criação de novas unidades de conservação e investir na efetiva implementação das que já existem. Além disso, também é necessário reconhecer terras indígenas, ribeirinhas e quilombolas, antes que essas populações sejam expropriadas por grileiros interessados em tomar as áreas ocupadas pelas chamadas populações tradicionais. "Nosso entusiasmo é nenhum, a preocupação é imensa, e entendemos que isso vai ser um cartório de concessões rápidas para legalizar o saque ao patrimônio fundiário do país", alfineta Leitão. Na opinião de Carvalho Filho, o Estado brasileiro está mais uma vez se rendendo às elites ligadas ao agronegócio e desperdiçando a oportunidade de fazer a reforma agrária, que poderia dar roupa nova à estrutura fundiária mais concentrada da história da humanidade.

Mesmo que saiam do papel, as propostas ainda deverão gerar dor de cabeça ao governo por um bom tempo. Certamente, os atuais ocupantes de terras que se sentirem lesados deverão recorrer à Justiça. "Tenho recebido recado de grandes grileiros dizendo o seguinte: ‘Não vamos ao Incra. Vamos nos encontrar na frente de um juiz daqui a dez anos’", conta Hackbart. Por essa razão, sensibilizar os magistrados brasileiros para essa questão é outra missão imprescindível no processo de reordenação fundiária da Amazônia. A situação é realmente bastante complexa. Mas, se não encará-la de frente, o poder público vai continuar sofrendo para solucionar os conflitos por terra e combater o desmatamento da floresta.
Carlos Juliano Barros
Revista Problemas Brasileiro, março/abril de 2009

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