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domingo, 29 de julho de 2012

"A IGNORÂNCIA DA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO"


Conhecimento é poder - trata-se de um velho lema da filosofia burguesa moderna, que foi utilizado pelo movimento dos operários europeus do século 19. Antigamente conhecimento era visto como algo sagrado. Desde sempre homens se esforçaram para acumular e transmitir conhecimentos. Toda sociedade é definida, afinal de contas, pelo tipo de conhecimento de que dispõe. Isso vale tanto para o conhecimento natural quanto para o religioso ou para a reflexão teórico-social. Na modernidade o conhecimento é representado, por um lado, pelo saber oficial, marcado pelas ciências naturais, e, por outro, pela "inteligência livre-flutuante" (Karl Mannheim) da crítica social teórica. Desde o século 18 predominam essas formas de conhecimento.

Mais espantoso deve parecer que há alguns anos esteja se disseminando o discurso da "sociedade do conhecimento" que chega com o século 21; como se só agora tivessem descoberto o verdadeiro conhecimento e como se a sociedade até hoje não tivesse sido uma "sociedade do conhecimento". Pelo menos os paladinos da nova palavra-chave sugerem algo como um progresso intelectual, um novo significado, uma avaliação mais elevada e uma generalização do conhecimento na sociedade. Sobretudo se alega que a suposta aplicação econômica do conhecimento esteja assumindo uma forma completamente diferente.

Filosofia das mídias - Bastante euforia é o que se apreende por exemplo do filósofo das mídias alemão Norbert Bolz: "Poder-se-ia falar de um big-bang do conhecimento.
E a galáxia do conhecimento ocidental se expande na velocidade da luz. Aplica-se conhecimento sobre conhecimento e nisso se mostra a produtividade do trabalho intelectual. O verdadeiro feito intelectual do futuro está no design do conhecimento. E, quanto mais significativa for a maneira como a força produtiva se torne inteligência, mais deverão convergir ciência e cultura. O conhecimento é o último recurso do mundo ocidental".

Palavras fortes. Mas o que se esconde por trás delas? Elucidativo é talvez o fato de que o conceito da "sociedade do conhecimento" esteja sendo usado mais ou menos como sinônimo do de "sociedade da informação". Vivemos numa sociedade do conhecimento porque somos soterrados por informações. Nunca antes houve tanta informação sendo transmitida por tantos meios ao mesmo tempo. Mas esse dilúvio de informações é de fato idêntico a conhecimento? Estamos informados sobre o caráter da informação? Conhecemos afinal que tipo de conhecimento é esse?

Na verdade o conceito de informação não é, de modo nenhum, abarcado por uma compreensão bem elaborada do conhecimento. O significado de "informação" é tomado num sentido muito mais amplo e refere-se também a procedimentos mecânicos. O som de uma buzina, a mensagem automática da próxima estação do metrô, a campainha de um despertador, o panorama do noticiário na TV, o alto-falante do supermercado, as oscilações da Bolsa, a previsão do tempo... tudo isso são informações, e poderíamos continuar a lista infinitamente.

Conhecimento trivial - Claro que se trata de conhecimento, também, mas de um tipo muito trivial. É a espécie de conhecimento com a qual crescem os adolescentes de hoje. Já aqueles na faixa dos 40 anos estão tecnológica-comunicativamente armados até os dentes. Telas e displays são para esses quase partes do corpo e órgãos sensoriais. Eles sabem que informações têm que ser observadas para acessar a internet ou como filtrar tais informações da rede, por exemplo, como se faz o "download" de uma canção de sucesso. E um dos meios de comunicação prediletos dessa geração é por escrito, o do "Short Message Service" ou, na forma abreviada, o SMS que aparece no display do celular. O máximo de comunicação está limitado ali a 160 caracteres.

Já é estranho que o armamento tecnológico de ingenuidade juvenil seja elevado à condição de parte integrante de um ícone social e seja associado ao conceito de "conhecimento". Em termos de uma "força produtiva inteligência" e "feito intelectual do futuro", isso é um pouco decepcionante. Mais próximos da verdade estaremos talvez se compreendermos o que se entende por "inteligência" na sociedade do conhecimento ou da informação. Assim, numa típica nota da imprensa econômica publicada na primavera de 2001, lê-se: "A pedido da agência espacial canadense, a empresa Tactex desenvolveu em British Columbia tecidos inteligentes. Em tiras de tecido são costurados em série minúsculos sensores que reagem à pressão. Primeiramente, o tecido da Tactex deve ter seu desempenho testado como revestimento de bancos de automóveis. Ele reconhece quem se sentou no banco do motorista... O banco inteligente reconhece o traseiro de seu motorista".

Para um banco de automóvel, trata-se, seguramente, de um feito grandioso. Temos de reconhecer. Mas, ora, não pode ser considerado a sério um paradigma para o "feito intelectual do futuro". O problema reside no fato de que o conceito de inteligência da sociedade da informação – ou do conhecimento – está muito especificamente modelado pela chamada "inteligência artificial". Estamos falando de máquinas eletrônicas que por meio de processamento de dados têm capacidade de armazenamento cada vez mais alta, para simular atividades rotineiras do cérebro humano.

Objetos inteligentes - Há muito que se fala na "casa inteligente", que regula sozinha a calefação e a ventilação, ou na "geladeira inteligente", que encomenda no supermercado o leite que acabou. Da literatura de terror, conhecemos o "elevador inteligente", que infelizmente se tornou maligno e atentou contra a vida de seus usuários. Novas criações são o "carrinho de compras inteligente", que chama a atenção do consumidor para as ofertas especiais, ou a "raquete inteligente", que com um sistema eletrônico embutido permite ao tenista um saque especial, muito mais potente.

Será esse o estágio final da evolução intelectual moderna? Uma macaqueação de nossas mais triviais ações cotidianas por máquinas, conquistando uma consagração intelectual superior? A maravilhosa sociedade do conhecimento aparece, ao que tudo indica, justamente por isso como sociedade da informação, porque se empenha em reduzir o mundo a um acúmulo de informações e processamentos de dados e em ampliar de modo permanente os campos de aplicação destes. Estão em jogo aí sobretudo duas categorias de "conhecimento": conhecimento de sinais e conhecimento funcional. O conhecimento funcional é reservado à elite tecnológica que constrói, edifica e mantém em funcionamento os sistemas daqueles materiais e máquinas "inteligentes". O conhecimento de sinais, ao contrário, compete às máquinas, mas também a seus usuários, para não dizer: seus objetos humanos. Ambos têm de reagir automaticamente a determinadas informações ou estímulos. Não precisam, eles mesmos, saber como essas coisas funcionam, mas precisam processar dados "corretamente".

Comportamento programável - Tanto para o comportamento maquinal quanto para o humano, na sociedade do conhecimento a base é dada, portanto, pela informática, que serve para programar sequências funcionais. Lida-se com processos descritíveis e mecanicamente reexecutáveis, com meios formais, por uma sequência de sinais (algoritmos). Isso soa bem para o funcionamento de tubulações hidráulicas, aparelhos de fax e motores de automóveis; e tudo bem que haja especialistas para isso. Porém, quando também o comportamento social e mental de seres humanos é representável, calculável e programável, estamos diante de uma concretização de visões de terror das modernas utopias negativas.

Essa espécie de conhecimento social de sinais lembra bem menos vôos audaciosos do que, isso sim, o famoso cão de Pavlov. No começo do século 20, o fisiologista Ivan Petrovitch Pavlov havia descoberto o chamado reflexo condicionado. Um reflexo é uma reação automática a um estímulo externo. Um reflexo condicionado ou motivado consiste no fato de que essa reação também pode ser desencadeada por um sinal secundário aprendido, que esteja ligado ao estímulo original. Pavlov associou o reflexo salivar inato de cães com a visão de ração por meio de um sino e pôde finalmente desencadear esse reflexo também ao utilizar o sino isoladamente.

Ao que parece, a vida social e intelectual na sociedade do conhecimento - aliás, da informação – deve ser levada a um caminho de comportamento que corresponda a um sistema de reflexos condicionados: estamos sendo reduzidos àquilo que temos em comum com cães, pois o esquema de estímulo-reação dos reflexos tem tudo a ver com o conceito de informação e "inteligência" da cibernética e da informática. O conjunto de nossas ações na vida é cada vez mais monitorado por dígitos, trilhas, clusters e sinais de todo tipo. Esse conhecimento de sinais, o processamento reflexo de informações, não é, porém, exigido somente no âmbito tecnológico, mas também no mais elevado nível social e econômico. Assim, por exemplo, se é como se diz, os governos, os "managers", os que têm uma ocupação, enfim todos devem permanentemente observar os "sinais dos mercados".

Esse conhecimento miserável de sinais não é, na verdade, conhecimento nenhum. Um mero reflexo não é, afinal, nenhuma reflexão intelectual, mas seu exato contrário. Reflexão significa não apenas que alguém funcione, mas também que esse alguém possa refletir "sobre" a tal função e lhe questionar o sentido. Esse triste caráter do conhecimento-informação reduzido foi prenunciado pelo sociólogo francês Henri Lefebvre já nos anos 50, quando ele, em sua "Crítica da Vida Cotidiana", descrevia a era da informação que chegava: "Ele adquire um "conhecimento". Mas em que consiste ele, exatamente? Não é nem o conhecimento (Kenntnis) real ou aquele adquirido por processos de reflexão (Erkenntnis), nem é um poder sobre as coisas observadas, nem, por último, a participação real nos acontecimentos. É uma nova forma do observar: um olhar social sobre o retrato das coisas, mas reduzido à perda dos sentidos, à manutenção de uma falsa consciência e à aquisição de um pseudoconhecimento sem nenhuma participação própria...".

O "sentido da vida" - Em outras palavras, a questão do sentido e da finalidade dos próprios atos de cada um se torna quase impossível. Se os indivíduos se tornam idênticos a suas funções condicionadas, eles deixam de estar em condições de questionar a si mesmos ou ao ambiente que os cerca. Estar "informado" significa então estar totalmente "em forma", formado pelos imperativos de sistemas de sinais técnicos, sociais e econômicos; para funcionar, portanto, como a porta de comunicação de um circuito complexo. E mais nada. A geração jovem da chamada sociedade do conhecimento é talvez a primeira a perder a questão pueril quanto ao "sentido da vida". Para isso não haveria espaço suficiente no display. Os "informados" desde pequenos não compreendem mais nem sequer o significado da palavra "crítica". Eles identificam esse conceito com o erro crítico, indicação de um problema sério, a ser prontamente eliminado na execução de um programa.

Nessas condições, o conhecimento reflexivo intelectual é tido como infrutífero, como uma espécie de bobagem filosófica da qual não precisamos mais. Seja como for, tem-se que lidar com isso de maneira pragmática. O primeiro e único mandamento do conhecimento reduzido diz: ele deve ser imediatamente aplicável no sistema de sinais dominante. O que está em questão é o "marketing da informação" sobre "mercados da informação". O conhecimento intelectual tem de ser encolhido para a condição de "informações". O que por exemplo será no futuro um "historiador" já é mostrado hoje pelo historiador Sven Tode, de Hamburgo, com seu doutorado.

Sob o título "History Marketing", ele escreve, sob encomenda, a biografia de empresas a comemorar aniversários de fundação; ajuda-as também cuidando de seus arquivos. Seu grande sucesso: para uma empresa norte-americana que se achava envolvida numa disputa pela patente de um encaixe tipo baioneta para mangueiras de bombeiro, Tode pôde desenterrar documentos arquivados que proporcionaram a quem encomendou os seus serviços uma economia de US$ 7 milhões.

Cada vez mais desempregados, indivíduos submetidos a uma dieta financeira de fome e portadores achincalhados de um socialmente desvalorizado conhecimento de reflexão se esforçam em transformar seu pensamento, reduzindo-o aos conteúdos triviais de conhecimentos funcionais e reconhecimentos de sinais, para permanecer compatíveis com o suposto progresso e vendáveis. O que se produz daí é uma espécie de "filosofia do banco de automóvel inteligente". Na verdade, é triste que homens instruídos no pensamento conceitual se deixem degradar à condição de palhaços decadentes da era da informação. A sociedade do conhecimento está extremamente desprovida de espirituosidade, e por isso até mesmo nas ciências do espírito o espírito vai sendo expulso. O que resta é uma consciência infantilizada que brinca com sucata desconexa de conhecimento e informação.

De todo modo, o conhecimento degradado em "informação" não se revelou economicamente estimulante na medida em que se havia esperado. A New Economy da sociedade do conhecimento entrou em colapso tão rápido quanto foi proclamada. Isso também tem sua razão; pois o conhecimento, seja lá na forma que for, diferentemente de bens materiais ou serviços prestados, não é reproduzível em "trabalho" e, portanto, em criação de valor, como objeto econômico. Uma vez posto no mundo, ele pode ser reproduzido sem custo, na quantia que se deseje. Em seu debate com o economista alemão Friedrich List, em 1845, Karl Marx já escrevia: "As coisas mais úteis, como o conhecimento, não têm valor de troca". Isso vale também para o atualmente reduzido conhecimento-informação, cuja utilidade pode ser posta em dúvida.

Assim a escassa reflexão intelectual vinga-se dos profetas da alegada nova sociedade do conhecimento. A montanha de dados cresce, o real conhecimento diminui. Quanto mais informações, mais equivocados os prognósticos. Uma consciência sem história, voltada para a atemporalidade da "inteligência artificial", tem de perder qualquer orientação. A sociedade do conhecimento, que não conhece nada de si mesma, não tem mais nada a produzir senão sua própria ruína. Sua notória fraqueza de memória é ao mesmo tempo seu único consolo.

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Marcelo Rondinelli.
Robert KurzFolha de São Paulo,
13 de janeiro de 2002 – Caderno Mais, p. 14-15.

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